sexta-feira, 19 de julho de 2013

O mistério político da maior explosão da história do Brasil


O Suburbonauta passou por Deodoro, na Zona Oeste do Rio, pulando do trem da Central a fim de buscar alguma glicose no restaurante popular da Rua dos Abacateiros.

Logo se lembrou do estrondoso (esta é a palavra) evento de 1958. Em agosto, completam-se 55 anos do maior “acidente” com material bélico já ocorrido no Brasil. Foi ali.
 
No total, somaram-se 72 horas de explosões no Depósito Central de Armamentos de Munições do Exército, o maior da América Latina na época. Há gente que, hoje, ouve menos e pior por conta dos 27 milhões de tiros disparados.

O fogo iniciou-se no paiol da infantaria. Foi conduzido pelo vento até a Granja do Exército, onde promoveu suplício de inúmeros animais.
 
Juscelino correu para lá, onde passou duas horas, tenso. Diziam uns que se tratava de sublevação, que mais uma vez os udenistas tentariam o golpe. Enquanto isso, a população corria desesperada pelas ruas, carregando seus humildes pertences.
 
Em outubro, uma nova série de explosões assustou os moradores do bairro. Desta vez, no entanto, havia em quem botar a culpa.
 
O jornal “A Tribuna da Imprensa”, golpista por excelência, publicou:
 
“Comunistas acusados da explosão de Deodoro! - A Polícia do Exército e investigadores da Divisão de Polícia Política e Social (DPPS) prenderam, ontem diversos comunistas, transportando-os, incomunicáveis, para a 1ª Divisão de Infantaria, como responsáveis pela explosão dos paióis do Depósito de Munições de Deodoro”.
 
De acordo com o noticioso, tratava-se de um ato subversivo destinado a adiar as eleições para deputados, senadores e governadores. A culpa seria do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
 
Começou a caça aos esquerdistas de Deodoro. Um dos presos era Antonio Albuquerque, presidente da Associação dos Vendedores Ambulantes do Rio de Janeiro, registrado na DPPS como “elemento ativista-militante do Partido Comunista”.
 
A “Tribuna da Imprensa” (24/10/1958) pinta Deodoro como um reduto vermelho, onde se abrigam vários núcleos e organizações de base controladas pelos comunistas.
 
A segunda acusação caiu sobre o presidente da Associação Pró-Melhoramentos de Guadalupe, que a Divisão considera um “comitê de bairro” a serviço do comunismo.
 
Outro detido foi o tenente Guimarães. Os três teriam executado a missão de explodir os paióis e desestabilizar os poderes constituídos.
 
Nilo Dias de Oliveira, em trabalho acadêmico sobre a vigilância do serviço secreto sobre associações democráticas, no período de 1956 a 1960, mostra que a própria DPPS, por meio do coronel Danilo Cunha, confirmou a prisão dos comunistas, mas não foi capaz de apresentar provas da ocorrência de sabotagem.
 
Mesmo sem as perícias policiais, a “Tribuna da Imprensa” apressou-se em julgar e condenar os esquerdistas. O objetivo era gerar revolta nas Forças Armadas e na opinião pública.
 
Devia-se pintar o PCB como um grupo infiltrado na classe trabalhadora, composto por figuras de má índole, acostumadas a promover atentados contra a segurança pública.
 
A imprensa de direita ainda associava esse desassossego à figura do general Henrique Teixeira Lott, Ministro da Guerra de JK, tido como um “simpatizante dos comunistas”. O objetivo é desgastá-lo e incriminá-lo.
 
Cabe lembrar que Lott era um legalista. Garantira a posse de Juscelino, em 1956, e prestaria auxílio semelhante a Jango, anos depois.
 
A versão da esquerda
 
Na época, o PCB publicava um jornal diário, vendido em bancas e nas portas das fábricas. Era o “Notícias de Hoje”, que executava criterioso trabalho de investigação dos fatos políticos.
 
Seu noticiário mostrava que as prisões de Deodoro faziam parte de um plano golpista da União Democrática Nacional (UDN) e de setores militares conservadores.
 
O jornal assegurou que a farsa tinha claro objetivo: “desgastar Lott politicamente e atacar os pontos fracos do governo JK, para criarem o clima propício à agitação, à desordem e à violência”.

O diário esquerdista sustentou ainda que a conspiração teria como mentores o brigadeiro Eduardo Gomes, o empresário e deputado Herbert Levy, o presidente da UDN, Juraci Magalhães. e o jornalista Julio de Mesquita Filho, de O Estado de S. Paulo.
 
O cenário favorecia um golpe. Havia denúncias de corrupção, infiltração comunista e uma agitação dos movimentos populares por melhores condições de vida.
 
Em carta ao Jornal do Brasil, em 2009, Ubirajara Guimarães, filho do tenente preso na ocasião, lançou novas luzes sobre o episódio:
 
- Esse evento trouxe para minha família muitos transtornos. Alguém tinha que ser incriminado pelas explosões, que até hoje não se sabe se foi sabotagem ou não. Foram acusar justamente o meu pai que dormia com a gente naquela noite, somente porque ele tinha convicções esquerdistas, apesar de ser Oficial do Exército RRM. Nós não sabemos nem podemos imaginar o que ele deve ter passado nas prisões por onde esteve na época, mas sabemos das sequelas, sem que nenhuma informação fosse prestada à família; dos 14 filhos dele, ainda existem 10 que se lembram perfeitamente daquele dia trágico.
 
Ubirajara ofereceu ricos detalhes sobre a noite das explosões:
 
- Até hoje eu, meus irmãos e o resto da família não conseguimos compreender como foi que o nosso pai, que dormia invariavelmente em casa, nos braços da minha mãe, conseguiu, depois de colocar todos para dormir, ausentar-se sorrateiramente, caminhar a pé até o paiol de Deodoro, burlar toda a guarda existente, abrir todas a chaves, colocar uma espoleta ou coisa parecida, de retardo certamente, acendê-la, voltar pra casa, deitar-se ao lado de minha mãe na maior tranquilidade e esperar que a coisa toda explodisse.
 
O golpe iniciado em Deodoro não vingou naquele momento. No entanto, pode ter colaborado para impedir a vitória de Henrique Teixeira Lott na eleição presidencial de 1960, quando foi derrotado por Jânio Quadros.
 
Quando Lott morreu em 1984, nos derradeiros momentos da Ditadura, foi enterrado sem honras militares. Quem lhe prestou homenagem foi Leonel Brizola, governador do Rio, que decretou luto de três dias.
 
Durante o sepultamento, o jurista Sobral Pinto manifestou-se comovido.
 
- Caso tivesse ido para a presidência do Brasil, teria instaurado um governo de legalidade e de respeito à pessoa humana, e uma vinculação com partidos políticos, porque era um democrata sincero, inteligente e honrado. Com Lott na presidência, não teríamos ditadura militar durante vinte anos, não teríamos a falência nacional. Nada disso teria acontecido.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O comunista do cinema que nunca comeu criancinhas


No mês passado, completaram-se 48 anos da estreia de “Adeus às Ilusões” (The Sandpiper), filme dirigido por Vincente Minnelli e estrelado por Elizabeth Taylor (em sua plenitude) e Richard Burton.
 
Quem hoje assiste aos 117 minutos digitalizados da fita pode ter a impressão de que o tempo, ali, é prematuro. Expõe um trabalho cinematográfico realizado entre 1964 e 1965, mas cujo roteiro parece escrito em época posterior.

Taylor vive Laura Reynolds, uma artista de alma livre, já embarcada na onda da contracultura, pós-beat e pré-hippie, que tem como propósito educar seu filho longe das torturantes e emburrecedoras escolas convencionais. 

O garoto, no entanto, enfrenta pequenos problemas com a lei e, por ordem judicial, é obrigado a frequentar uma instituição da Igreja Episcopal, dirigida por Edward Hewitt (Burton).

A princípio, instaura-se o conflito. A moral de certo modo libertária de Laura choca o educador religioso. Aos poucos, no entanto, as diferenças brutais acendem a faísca da atração e a dupla se entrega a um affair.

O romance é embalado por “The Shadow of Your Smile”, de Johnny Mandel e Paul Francis Webster, que se tornaria um hit eterno das trilhas cinematográficas.

O filme é cativante. Tem choque de culturas, rebeldia, amor e, logicamente, aquela tristeza aguda dos que, em algum momento, se julgam incapazes de dobrar as vigas da pesada estrutura das relações sociais.

Credita-se a história ao produtor Martin Ransohoff, mas a equipe dos roteiristas tem como estrela o talentoso e polêmico James Dalton Trumbo (1905 – 1976).

Sua história daria um filme (e deu, existe um documentário de 2007 sobre sua vida). Depois da morte do pai, o jovem Trumbo passou anos como um trabalhador comum, embalando pães numa padaria de Los Angeles. 

Nos primeiros anos, escreveu 94 trabalhos, entre contos e novelas, que foram recusados pela editoras.

Desde cedo, Trumbo tinha consciência da vida dura de muitos trabalhadores norte-americanos, que esgotavam a saúde em fábricas insalubres e mal podiam sustentar suas famílias.

Assim, decidiu trilhar o caminho da esquerda e abraçar as causas socialistas. Entre 1943 e 1948, foi membro efetivo do Partido Comunista dos EUA. Seus trabalhos sempre tiveram um traço humanista, solidário e progressista.

Em outubro de 1947, o Comitê de Atividades Antiamericanas convocou vários profissionais da indústria do cinema para que depusessem sobre as supostas ações de agentes comunistas e simpatizantes para transformar os filmes norte-americanos em peças de propaganda esquerdista.

Trumbo e outros nove convocados recusaram-se a fornecer informações sobre o tema. Por esse “desacato” ao Congresso, foram incluídos na famigerada “lista negra” de Hollywood. Três anos depois, o roteirista foi condenado e passou onze meses numa penitenciária federal, em Ashland, no Kentucky.

Depois da aplicação das punições, alguns atores e diretores decidiram colaborar com o esquema macartista (termo que tem origem nas atividades anticomunistas do senador Joseph McCarthy).

O diretor Elia Kazan, por exemplo, testemunhou na comissão e entregou os nomes de vários amigos simpatizantes de causas supostamente comunistas.

Depois da prisão, Trumbo não conseguiu obter trabalho nos Estados Unidos e viu seus filhos serem hostilizados na escolas e nas ruas. 

Vendeu sua fazenda e foi viver no México, onde continuou a produzir roteiros, assinando-os com pseudônimos. No desterro, trabalhava muito e ganhava pouco. 

Em 1953, escreveu o roteiro do singelo “A Princesa e o Plebeu”, filme estrelado por Gregory Peck (um repórter) e Audrey Hepburn (uma herdeira da realeza). Os créditos, no entanto, foram para Ian McLellan Hunter, que assumiu a autoria do trabalho.

Em 1956, construiu a história de “Arenas Sangrentas”, que arrebatou um Oscar. O trabalho, entretanto, foi creditado a Robert Rich.

Aos poucos, porém, a sociedade norte-americana reuniu coragem para contestar a aplicação da “lista negra”. 

O diretor Otto Preminger anunciou publicamente que o roteiro de “Exodus”, de 1960, surgira de páginas datilografadas por Trumbo. Logo depois, Kirk Douglas seguiu o exemplo, honrando o trabalho do escritor em “Spartacus”.

Em 1975, a Academia finalmente considerou Trumbo como o verdadeiro ganhador do Oscar de 1956, concedendo-lhe a estatueta. Em 1993, já depois de morto, teve reconhecido o seu trabalho em “A Princesa e o Plebeu”.

Trumbo nutria grande simpatia pelo gênero humano, sem preconceitos. E, como se sabe, comovia-se especialmente com os mais necessitados.

Trabalhador incansável, valente, atrevido, leal, contribuiu para constituir uma cultura ocidental de massa mais tolerante e mais amorosa.

Nunca comeu criancinhas. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

A passeata contra a guitarra (quando gente boa faz coisas tolas)


Sei que foi em 17 de Julho, porque outros eventos infaustos estão agarrados a esta marca do tempo. Há exatos 30 anos, meu pai amigo saiu de meus braços e saltou para a arquibancada de cima. 

Também foi o dia em que a reação conservadora iniciou o levante que deu origem à Guerra Civil Espanhola. Recorda-se ainda como a data em que a família de Nicolau II foi ao paredão, resultado de uma decisão estúpida de incertos líderes bolcheviques.

A estranha “Passeata da MPB”, muito mais conhecida como “Passeata contra a guitarra elétrica”, foi realizada num 17 de julho, em 1967, em São Paulo. 

Partiu do Largo São Francisco e dirigiu-se ruidosa ao Teatro Paramount, na Avenida Brigadeiro Luís Antonio. A palavra de ordem era: “defender o que é nosso”.

A ideia era fortalecer um movimento de rejeição à música estrangeira, especialmente o rock. Gente boa, como Elis Regina, Geraldo Vandré, Edu Lobo e Zé Keti, convocaram o povo para o levante. 

Até Gilberto Gil (quem diria?) participou do ato que misturou nacionalismo, provincianismo xenófobo e desvario juvenil.

Gil oferece duas justificativas para sua participação. Primeira: estava apaixonado por Elis. Segunda: era jovem, queria militar de alguma forma, embora não nutrisse qualquer aversão pela guitarra.

Caetano e Nara Leão cometeram acerto e recusaram o convite. Permaneceram no Hotel Danúbio, na própria Brigadeiro Luís Antonio, assistindo ao cortejo. 

Nara disse que mais parecia uma manifestação integralista (movimento ultra-conservador tradicionalista brasileiro).

Caetano, fleumático, teria dito: “acho isso muito esquisito”. Nara, mais enfática, emitiu opinião radical.

- Esquisito, Caetano? Isso aí é um horror. É fascismo mesmo!

Se alguém viu a mão da Globo por trás dos levantes de 2013, havia em 1967 o estímulo de um grupo da Record, ainda inconformado com o fim do programa “O Fino da Bossa”, um mês antes. 

O inimigo mais visível era o povo da Jovem Guarda, associado à invasão cultural norte-americanista.

Em outubro daquele ano, no entanto, Gilberto Gil exibiria uma alternativa às dicotomias que levavam músicos a trocar socos diante de bares e casas de show. 

No III Festival de Música Popular Brasileira, no mesmo Teatro Paramount, cantou “Domingo no Parque”, prima obra, misturando o berimbau com a guitarra de Os Mutantes.

O magricelo (e, na época, simpático) Caetano logrou algo parecido com a genial “Alegria, Alegria”, executada numa parceria com a banda The Beat Boys. 

Muita coisa boa e bacanex surgiu da ideia de “sem lenço, sem documento” e do consentimento internacionalista na existência de “cardinales bonitas”.

Estavam fincadas, definitivamente, as bases do Movimento Tropicalista, que recuperava a vanguarda modernista dos anos 20 e 30 e as reflexões do Movimento Antropofágico. 

Nada de guetos. Vamos digerir a cultura dos gringos, mesclá-la a nossa rica tradição popular e construir o novo na diversidade, sem preconceitos.

O tropicalismo ressuscitou Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Pagu. E os imergiu na novidade da pop-art, do concretismo e do rock.

Aí, sim, gente bacana fez coisa inteligente. A Tropicália mostrou que a Ditadura Militar era feia, chata, burra e deselegante. 

Criou-se aí a melhor estética da resistência. Que copiemos, hoje, esse paradigma. Quem se arrisca a tropicalizar?